Colaborou Marilene de Paula
No dia 17 de abril o país assistiu a Câmara de Deputados aprovar o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, hoje os brasileiros aguardam a decisão dos senadores sobre o futuro da presidente, mas fica cada vez mais notório para a população brasileira que o sim para o afastamento da Presidente não caminha no sentido de uma transformação política de um país que vive uma crise econômica e de representação, tempos nos quais as utopias estão ausentes. É o que reflete o deputado federal Chico Alencar, em entrevista para a Fundação Heinrich Böll. Nesse mesmo dia 17, antes de registrar o não ao impeachment, ele afirmou: "Contra a hipocrisia que faz corruptos se tornarem arautos da moralidade [...], por uma reforma política radical com participação popular, pelo direito da população que luta pela terra, trabalho e dignidade [...]." Mais de 20.000 pessoas curtiram e outras quase 7.000 compartilharam o vídeo do voto do deputado. Chico está em seu quarto mandato, no último eleito pelo PSOL, partido que é um dos fundadores após deixar o PT na ocasião do escândalo do Mensalão, em 2006. Chico conta que na Câmara há muitos que mentem sem pudor, mas que isso não tira seu sono, pois não faz parte dessas "cretinices parlamentares", lembrando uma frase de Lenin. O parlamentar, que também é professor de história, conquista cada vez mais o difícil respeito da opinião pública e foi indicado, por jornalistas como o deputado federal mais atuante do país. Além disso, desde de 2005 é apontado, pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), como um dos 100 parlamentares mais influentes do Congresso Nacional.
Apresentamos esta entrevista buscando unir esforços com aqueles que desejam mostrar o que está acontecendo no Brasil para o mundo, reforçando o papel da Fundação Heinrich Böll de sempre estar comprometida com o fortalecimento das democracias. Apesar de uma análise dura do jogo político no país, o deputado aponta caminhos de esperança. Confira a entrevista, que em breve também estará disponível em inglês e alemão.
Böll Brasil: Há alguma lição que pode ser tirada da votação na Câmara do processo de Impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Chico Alencar: O 17 de abril foi mais uma tarde/noite histérica do que histórica. Na verdade foi o marco mais importante de um processo político que não significa nenhuma mudança radical. Nesse sentido, eu tenho reservas com a conceituação de golpe, embora eu entenda que ela tenha muita força de compreensão popular. Mas o golpe que eu vivi foi o civil militar de 1964, como aconteceu em vários países da America Latina. Um golpe na força bruta, que mudou regimes democráticos, mais ou menos reformistas, substituídos por ditaduras fechadas, cerceamento das liberdades democráticas mínimas, censura, prisão, tortura, exílio, morte. É obvio que não é isso que está acontecendo agora, nem foi o que aconteceu no Paraguai onde [o presidente Fernando] Lugo também foi deposto por um golpe ou uma articulação parlamentar ou em Honduras com [Manuel] Zelaya. Na Argentina saiu o Kicherismo, essa derivação do Peronismo, que veio com Néstor [Kirchner], depois continuou com Cristina [Kirchner]. [Agora] veio um novo regime com a eleição do Macri, que é ultra-ortodoxo, liberal, de direita, conservador, modernizante, como eles se dizem.
Aqui no Brasil a tentativa é uma usurpação do poder com o aval do Parlamento e dentro daquilo que a Constituição prevê. O impeachment é o instrumento mais drástico da nossa ordem política abrigado pela Constituição. Uma das lições desse período dramático é não brincar com o impeachment. Eu sou de um campo político que volta e meia já vai para as ruas falando: Fora!; Fora fulano!; Fora beltrano!. Eu fui do PT muito tempo e há dez anos não sou mais, por uma série de problemas. O próprio PT deixou seu programa, deixou a si mesmo. A gente sempre brinca: nós não saímos do PT, o PT que saiu de si mesmo. Defendemos o impeachment do Sarney, depois do Collor, depois do Itamar, depois do Fernando Henrique e só paramos quando o Lula chegou lá. Agora o feitiço virou contra o feiticeiro de maneira trágica e dramática, porque a gente sabe que nesta sessão do dia 17 de abril, o conteúdo político do impeachment ficou muito escancarado e verbalizado: o paroquialismo, o clientelismo, o atraso, a política menor, o conservadorismo, o fundamentalismo, a homofobia, a misoginia, a corrupção.
Foi um festival de hipocrisia também. Estou no quarto mandato e conheço muito bem cada personagem ali e já conheci um pouco dos novos que chegaram, pois houve uma renovação de quase 50% do Parlamento, da Câmara de Deputados, mas a linha política é a mesma: a que naturaliza a corrupção e entende que ela faz parte do processo político, embora ninguém a assuma ou a defenda publicamente. Então o que temos é um rearranjo do bloco no poder na medida em que se considerou o PT, em especial a Dilma, disfuncional para os interesses desse bloco.
Mas o novo governo legítimo do Michel Temer tem ministros que foram da Dilma. Tem como principal condutor da economia, que é a prioridade desse governo para o ajuste liberal e duro, Henrique Meireles que era o sonho de consumo de Lula para o ministério da [Fazenda] de Dilma. Henrique foi durante o período dos dois mandatos do Lula o presidente do Banco Central. Então não há grandes mudanças na verdade. Há um enfoque mais reacionário, mais conservador, de maior repressão aos movimentos sociais, sem dúvidas. Mais vigilância sob o MST, sob o MTST. Isso tudo é péssimo, mas ainda não é o fim dos tempos, até porque vivemos, no conceito Gramsciano , nos tempos do interregno.
Há um modelo político inaugurado pela Nova República, com a superação da ditadura nos anos 1980, que se esgota porque não realizou as promessas de democracia e direitos sociais que estão na Constituição de 1988 e o novo ainda não surgiu. O presidencialismo de coalizão se esgota, mas uma nova democracia mais participativa que combine as formas representativas com as presentativas mais diretas também não se consolidou. Então, vivemos esse período de muita instabilidade onde surgem figuras monstruosas, como Eduardo Cunha, e que não têm lastro histórico. Esses personagens, [Romero] Jucá, Eduardo Cunha, para citar dois, vão desaparecer da cena política brasileira.
Böll Brasil: Em entrevista na semana passada, você falou que existe um condomínio do poder no Brasil. Do que se trata esse condomínio?
Chico Alencar: Esse condomínio do poder é um bloco que está sempre no poder, mesmo com a mudança dos governos. Se olharmos a trajetória, para citar os mais famosos dessa semana por causa da divulgação das escutas, veremos as tratativas deles para se manterem no poder a despeito da Lava Jato. Jucá, Renan Calheiros, José Sarney... o próprio Sérgio Machado, que foi da Transpetro durante toda a era Lula e Dilma, uma operadora poderosa da Petrobras que compra navios e administra essa frota, portanto é uma função cobiçadíssima. Ele foi nos anos 90 deputado e senador pelo PSDB. O Jucá esteve em todos os governos, inclusive na ditadura. Eles são camaleônicos. São eles que constituem o condomínio do poder, como um edifício onde não há mobilidade social, de preferência. Agora às vezes há necessidade de trocar o síndico, como acabou de acontecer.
Böll Brasil: Como o vazamento dos áudios influencia o processo do impeachment?
Chico Alencar: Uma das perguntas a serem feitas é: se foram gravados em março, por que só vazaram agora? Isso iria alterar substancialmente [a votação]. É provável que pelo menos com essa margem avassaladora de 367 votos ele não passasse na Câmara ou não tivesse tamanha quantidade de votos. Ia problematizar mais, gerar mais debates pelo menos. Então tudo é um jogo. Mas de qualquer maneira, é bom lembrar que o PT, o Lula, a própria Dilma também são alvos das conversas, como se fizessem parte deste condomínio do poder.
Eu reparei, no que eu li até agora, que não há a palavra corrupção, não há as palavras interesse público. A crise é lida como a crise deles: Vai sobrar para todo mundo; Que cagada; Ninguém vai sobreviver; Vai cair todo mundo; O Aécio vai ser o primeiro a ser comido, mas todos vão ser servidos na bandeja. São declarações de que todos esses setores dominantes estão envolvidos e preocupados em como se salvar, como delimitar, como disse o Jucá, as investigações e como estancar essa sangria. Ele tem um cinismo atroz, ainda tentou dizer em uma primeira explicação, que estava se referindo a economia brasileira. Eles mentem sem pudor, naturalizam tudo.
Böll Brasil: Você dorme bem Chico depois de ver tudo isso?
Chico Alencar: Eu durmo bem porque não estou envolvido nessas falcatruas, mas custo a pegar no sono porque vivo nesse ambiente de cinismo. O velho Lenin falava do cretinismo parlamentar que é muito forte e o pior que tem gente de bem que não se indigna, que não cobra.
Böll Brasil: A saída é a reforma política? Se sim, como fazê-la?
Chico Alencar: A saída é mais democracia. Um novo nome para o socialismo, uma nova organização para a sociedade brasileira e do mundo mesmo, penso eu, é a democratização radical. Uma economia mais igualitária que supere as profundas desigualdades sociais, é uma economia democrática, um planejamento econômico democrático. Uma reforma política que tire as oligarquias do controle, que bagunce o condomínio do poder. Socializar os meios de governar e democratizar os meios econômicos.
Como se traduz isso? Sempre levando em conta um dado novo que no Brasil a gente não considera, a não ser nos discursos, que é a questão ambiental e a questão ecológica, por isso a ideia do ecossocialismo nos é muito cara. É um conceito novo, mas o cuidado ambiental até o papa já reconheceu. Não é a toa que na última publicação do meu mandato, chamada "Há Caminhos", a gente transcreve boa parte da encíclica do Papa sobre o cuidado com a casa comum - ladauto si [português: Louvado sejas; subtítulo: "Sobre o Cuidado da Casa Comum"].
É claro que isso pressupõe uma reforma política radical para fazer com que a economia não continue colonizando a política e que os partidos sejam de fato o que eles devem ser: doutrinários, programáticos, ideológicos com projetos e visões de mundo. Hoje não. Partido é uma associação de gente muitas vezes inescrupulosas para arrancar nacos do orçamento público e amparar carreiras individuais. Eduardo Cunha é o símbolo desse tipo de política apequenada. No Brasil a chamada pequena política se tornou a grande política, quase que a única.
Agora como virá uma reforma política? Nós apresentamos um projeto de lei de iniciativa popular muito bom, num processo coletivo, liderado pela CNBB e diversas entidades. Apresentamos, mas foi rejeitado lá [Câmara] pela maioria absoluta de deputados e senadores. Eles acharam esdrúxulo. É uma certa ilusão você querer que mude os mecanismos de poder por quem já está aboletado nesse poder, por isso que uma reforma política precisa de uma assembleia constituinte, soberana, eleita em novas bases, com igualdade de apresentação das diferentes propostas. Uma pequena revolução ainda que pelos meios democráticos e legais. Temos que criar forças para isso, criar uma nova consciência, cidadania horizontal, senão não anda. Mas eu lembro em 2013 a pressão dos movimentos sociais, e eu fiz até um livro sobre isso chamado "Rua, Nação e Sonho", abalou muito o poder. Claro que não houve nenhuma mudança substantiva, mas eles ficaram acuados e assustados, os velhos donos do poder. Depois quando o movimento arrefeceu, eles foram ficando a vontade de novo e voltaram até a roubar.
Böll Brasil: O que esse discurso baseado unicamente no combate a corrupção, que levou tantas pessoas para as ruas, esconde?
Chico Alencar: Primeiro tem uma tradição brasileira que é o chamado moralismo udenista que considera... é uma visão meio romântica até da própria corrupção... que ela está isolada das estruturas sociais, da dinâmica dos sistemas que estimulam o individualismo, o egoísmo, o levar vantagem, a ideologia do consumo contínuo como regra de vida para você ser feliz. Isso tudo cria o caldo de cultura da corrupção. É a ideia de que a superação da corrupção vem através de pessoas íntegras, probas, honestas que com as suas qualidades pessoais contaminariam, no bom sentido da palavra, toda a sociedade, quando a estrutura muitas vezes te leva a se corromper. Claro que não é justificativa, mas é preciso ter uma visão mais sistêmica, lembrar que a corrupção no Brasil é histórica, estrutural, crônica e tem a ver com o sistema e com o modelo que a gente vive. Eu prefiro, portanto, falar de moralidade pública e de ética pública. Isso deve nos levar a não querer subornar o guarda da esquina, embora isso aconteça cotidianamente. Eu entendo esse clamor justo contra a corrupção, é um lado generoso. Agora, tem muita gente que está lá com o cartaz contra a corrupção e para o carro em fila tríplice, trafega em acostamento, sonega impostos. Eu vi uma vez, em uma dessas manifestações dos chamados coxinhas, em São Paulo, uma placa escrita assim: sonegar não é crime. Tava se entregando...
É claro que tudo depende da politização. Uma visão mais rasa é isso: tudo é ladrão, cadeia, pena de morte para os ladrões e tudo se resolve. Quando na verdade se não mudamos os mecanismos de composição do poder e os mecanismos de controle, a coisa não avança. Quando vemos o atual ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, antiga CGU [Controladoria Geral da União], orientando o Renan [Calheiros] a não falar tudo para a PGE [Procuradoria Geral do Estado], ou seja, em um país onde um ministro da transparência de um suposto governo que emergiu pela ojeriza a corrupção, orienta como não ser transparente, isso revela que alguma coisa está profundamente errada aí. Lembrando que primeiro pela composição do governo, sendo do PMDB que é um partido dos mais corrompidos do Brasil, já é para desconfiar. Então eu acho que é preciso combinar uma visão de mais profundidade da democratização da sociedade. Com mecanismos de controle social sobre a gestão pública você combate a corrupção, que realmente é o cupim da República. Agora não é algo derivado da índole das pessoas, não foi inventado pelo PT e nem é recente. É preciso ir fundo.